Título original: The drowning girl: a memoir
Título: A menina submersa: memórias
Autora: Caitlín R. Kiernan
Editora: Darkside books
Páginas: 317
"Datilografou Imp..."
Para uma história diferente uma resenha diferenciada. Foi nisso que pensei antes mesmo de chegar a metade do livro. De repente fui invadida por uma curiosidade que me fez reunir citações, levantei artigos científicos e além de aprender um pouco sobre a esquizofrenia achei que seria legal compartilhar esse conhecimento com vocês e espero ter atingido o meu objetivo. Qualquer contribuição e correção deixem nos comentários.
India Morgan Phelps, Imp como é chamada, decide datilografar suas lembranças tomando o conselho da mãe, Rosemary Anne.
"Quando alguma coisa deixa forte impressão em nós, deveríamos fazer o nosso melhor para não esquecer. Por isso anotar é uma boa ideia." p.22
De acordo com Imp, a mãe, a avó e possivelmente a bisavó eram esquizofrênicas, assim como ela é também. O primeiros sintomas de Imp possivelmente começaram a surgir após uma visita com a mãe, em seu aniversário de 11 anos, em um museu onde se deparou com o quadro de Phillip George Saltonstall: A menina submersa. A partir dali pelo o que ela conta, apesar de ser tudo bem confuso, Imp parece adquirir uma obsessão por sereias, água, mar e particularmente pelo quadro, pela garota representada no quadro e pelo pintor.
De acordo com que é relatado a obsessão fica clara pelas pesquisas frequentes, recortes e histórias escritas por ela e guardadas em uma pasta. Além de pinturas já que a personagem tem grande talento para as artes.
Como aprendi na faculdade não vou dizer que a Imp nos engana, pois isso a retrataria como uma mentirosa. E apesar de se tratar de uma personagem fictícia, eu aprendi que o que o portador de transtorno mental relata é a verdade dele. Tentei então ler o livro com essa perspectiva e durante a leitura fui percebendo que praticamente todas as coisas banais do nosso cotidiano como caminhar, atravessar uma rua, conduzir um carro, a natureza, praticamente tudo ao redor para Imp era aterrorizante. Tudo era um cenário de filme de terror. As árvores, os pássaros, o mar, o farol do carro nada escapava de ser descrito como algo sobrenatural.
"Há muitas sobreposições e eventos demais que uma ou outra iniciou, de propósito ou não, e não faz sentido fazer isso, se tudo que eu posso lidar é uma mentira.
O que não significa dizer que cada palavra será factual. Apenas que cada palavra será verdadeira. Ou tão verdadeira quanto eu consiga." p.17
Várias passagens nos remetem ao que parecem ser possíveis alucinações. Uma delas seria o fato de Imp ter se encontrado com a garota do quadro, por duas vezes. Mas acontece que ela mesma duvida dos próprios pensamentos e se revela bem ciente no que se refere a sua psicose.
"Não tinha percebido que
também sou louca - e que provavelmente sempre havia sido - até alguns
anos depois da morte de Rosemary. É um mito que pessoas loucas não
saibam que são loucas." p.15
Os pensamentos confusos estão impressos por todos os cantos das páginas. A princípio ela diz que quer falar das suas memórias como a mãe antes de morrer em um hospital psiquiátrico lhe aconselhou. E em outro ela diz que vai escrever uma história de fantasmas, lobos, sereias... o que nos remete a uma ficção, mas como eu já disse tudo isso é a realidade da personagem. Ela nega que separara a história em capítulos por não ver necessidade alguma nisso, mas acaba por fazer essa separação. Ela se refere também a vozes, mas antes mesmo de fazer essa referência fica visível a sua perturbação quanto a isso quando ela deixa transparecer o que a voz ordena, ao datilografar. E esse é um dos motivos que torna o livro repetitivo, com momentos que parece que a história não vai andar de tanto que a Imp duvida de suas memórias e briga constantemente com a voz.
Ela relata também a terapia, os remédios de que faz uso trazendo a tona os efeitos colaterais e como eles impactam na sua vida. Certas coisas chamaram a minha atenção como o fato de a Imp morar sozinha sendo que na condição dela o apoio familiar é imprescindível. Ela aparenta estar apenas ligada aos fantasmas das mulheres que fazem parte do que ela é e do pintor Saltonstall. Ela também tem um emprego, mas com o agravamento dos sintomas há momentos em que ela fica impossibilitada de ir trabalhar.
"A loucura da minha família se alinha de modo ordenado, feito vagões: avó, filha, filha da filha, além da minha tia-bisavó (...) Mas elas são parte da minha história e tenho de voltar a elas para contá-la." p.17
De acordo com a personagem ela morou durante um tempo com Abalyn a qual namorou e acompanhou de perto a evolução dos sintomas da sua doença até que Abalyn, depois do que pareceu ser uma tentativa de suicídio de Imp a abandonou. Achei muito delicado o fato de além de a personagem ser esquizofrênica ser também homossexual.
A definição atual de
esquizofrenia indica uma psicose crônica idiopática, aparentando ser um
conjunto de diferentes doenças com sintomas que se assemelham e se
sobrepõem. A esquizofrenia é de origem multifatorial onde os fatores
genéticos e ambientais parecem estar associados a um aumento no risco de
desenvolver a doença.
"Os aspectos mais característicos da esquizofrenia são alucinações e delírios, transtornos de pensamento e fala, perturbação das emoções e do afeto, déficits cognitivos e avolição (A não iniciação de comportamentos dirigidos a um objetivo ). Alucinações e delírios são frequentemente observados em algum momento durante o curso da esquizofrenia.
As alucinações visuais ocorrem em 15%, as auditivas em 50% e as táteis em 5% de todos os sujeitos, e os delírios em mais de 90% deles (Pull, 2005)."
Citações que evidenciam alguns dos sintomas da psicose:
- Distúrbio obsessivo compulsivo:
"A dra. Ogilvy desconfia que minha predileção por datas pode ser uma expressão de aritmomania. E, para ser justa com ela, eu deveria acrescentar que durante a adolescência e os 20 anos, quando minha insanidade incluiu uma grande quantidade de sintomas atribuíveis ao transtorno obsessivo compulsivo, eu tinha dezenas e dezenas de elaborados rituais de contagem." p.64
"A dra. Ogilvy desconfia que minha predileção por datas pode ser uma expressão de aritmomania. E, para ser justa com ela, eu deveria acrescentar que durante a adolescência e os 20 anos, quando minha insanidade incluiu uma grande quantidade de sintomas atribuíveis ao transtorno obsessivo compulsivo, eu tinha dezenas e dezenas de elaborados rituais de contagem." p.64
- Desorganização da sintaxe:
"Se eu contasse minhas histórias de fantasmas como deveria, talvez não houvesse nem pontuação. Nem espaços entre uma palavra e outra. Não ouço sinais de pontuação na minha cabeça. Todos os meus pensamentos correm juntos e eu os separo e prego no lugar." p.127
"Se eu contasse minhas histórias de fantasmas como deveria, talvez não houvesse nem pontuação. Nem espaços entre uma palavra e outra. Não ouço sinais de pontuação na minha cabeça. Todos os meus pensamentos correm juntos e eu os separo e prego no lugar." p.127
- Excitação motora:
"Não ouvi a recepcionista quando ela disse que eu podia entrar. Estava ocupada demais rabiscando as margens das páginas de um exemplar de um ano atrás da revista feminina Redbook. No fim, a dra. Ogilvy saiu para ver se havia algo errado e me encontrou escrevendo na revista. Eu anotara os versos de "A quadrilha da lagosta" repetidas e repetidas vezes, fora de ordem." p. 176
- Alucinação auditiva:
"(...) Bem no fundo, tão baixo que talvez você nem escute, tem estática. Ruído branco. Ou alguém que murmura. E lentamente o som fica cada vez mais alto. No início, é fácil ignorar. Praticamente nem está ali. Depois porém, fica tão alto que não dá para ouvir mais nada. No fim o som engole o mundo inteiro. Mesmo se você tirar os fones de ouvido o barulho não vai parar." p.109
A Menina Submersa não é uma história que vai agradar muitos leitores. Vai ser difícil lidar com toda a confusão, com a escrita da autora, vai requerer paciência e acredito que até um conhecimento prévio sobre esquizofrenia. Não vai ser um livro que ao terminar você vai sentir que compreendeu que concluiu a leitura. Isso não vai acontecer e é perturbador já que se têm tantos outros livros pra gente se aventurar e algumas pessoas podem sentir que perdeu tempo. Outras podem gostar bastante como foi o meu caso. Ler essa obra foi um desafio e confesso que foi uma das melhores leituras que eu já realizei. Talvez deva ser por eu gostar de ler sobre assuntos da área da psiquiatria, então o meu olhar para a Imp foi diferente.
Vale a pena mencionar que a personagem faz reflexões bem realistas que nos faz pensar sobre a responsabilidade do que escrevemos ou do que produzimos. Pois um texto, uma pintura, um livro, uma música pode despertar coisas nas pessoas assim como aconteceu a ela quando se deparou com o quadro que lhe causou uma forte impressão. E por último, e não menos importante quero dizer que a diagramação do livro é incrível assim como todos os livros da Darkside books que são impecáveis a editora realmente capricha.
